Saneamento básico: Belém da COP-30 e o legado deixado para a cidade

21 de nov. de 2025

Hoje se aproxima de um milhão e meio o número de habitantes no município de Belém e um pouco mais que a metade dessa população é feminina. Importante pensarmos esses impactos sob uma perspectiva de gênero que considere a sobrecarga e adoecimento de meninas e mulheres. Além do mais, há especificidades como mulheres que são pessoas com deficiência, que pertencem a povos indígenas, que são migrantes, e outras experiências de vida que as afastam da partilha em comunidade, como violência doméstica, pobreza menstrual, abandono escolar, assédio religioso e demais abusos. 

Por Chayenne F., paraense, geógrafa, mestra em Diversidade Sociocultural,

Belém é uma das ocupações mais resistentes da Amazônia e continuamos sob graves ameaças, tão danosas quanto aquelas que chegaram com os primeiros invasores há 500 anos atrás. Nos últimos dias nos deparamos com turistas de diversas partes do mundo se divertindo ao longo de sua estadia por aqui, mas a população local enfrenta desafios cotidianos que refletem uma desigualdade socioeconômica que deveria nos escandalizar. Somos a capital com mais dias de calor extremo do Brasil. São evidências de racismo ambiental, ideia que pode ser explicada pelo fato de que, são os mais pobres, os que vivem nos beiradões e dependem diretamente da natureza para seu modo de vida que sofrem primeiro e mais intensamente, os impactos causados pelas mudanças climáticas.

A 30ª Conferência das Nações Unidas sobre o Clima é um evento de grande relevância diplomática e cumpre seu papel internacionalista ao ser realizada nesta edição em um lugar tão estratégico para o tema. O que me incomoda - mas não me surpreende, mesmo sendo minha primeira COP - é a formação de uma bolha, onde seu passaporte (ou a ausência dele) define a fronteira entre quem deve desfrutar do bem viver, e quem está destinado a ser deixado morrer sem sequer reivindicar suas necessidades, como aponta o filósofo camaronês Achille Mbembe. É duro perceber que, para muitos, a Amazônia no momento não passa de uma encenação, paisagem natural romantizada onde os maiores tomadores de decisão do planeta decidem sobre o presente e o futuro de quem está ausente, do lado de fora da Blue Zone, exposto a variações e vulnerabilidades que continuam sem solução ao fim das reuniões. Belém se revela claramente repartida em duas cidades: uma em que faz 16 graus Celsius graças ao sistema potente de ar condicionado das instalações e geradores a óleo Diesel, e outra onde a sensação térmica ultrapassa os 36ºC, durante deslocamento de ônibus ou a pé pelas ruas das baixadas nem um pouco arborizadas, ao sol do meio dia.

Segundo o Portal da Transparência do Governo Brasileiro, foram investidos R$4,2 bilhões de recursos federais destinados a 22 obras estimuladas pela realização da COP-30, evento voltado ao público internacional que prevê a participação de 44 mil pessoas credenciadas para ocupar esse espaço tão privado. Na comunicação oficial da conferência, os responsáveis relembravam gentilmente aos envolvidos que não descartassem o papel higiênico no vaso sanitário dos banheiros de Belém, pedindo cooperação com a limpeza do espaço para o “conforto de todos”. O costume de dar descarga no papel higiênico é comum em países como Portugal, Espanha, Itália, Suíça, Dinamarca, Estados Unidos, Canadá, onde o acesso à água e saneamento básico de qualidade contempla praticamente a totalidade da população.

O Painel Saneamento, desenvolvido pelo Instituto Trata Brasil, apresenta dados sobre o tema de resíduos sólidos, filtrados por município, por ano e por indicador. A plataforma indica que segundo dados do Sistema Nacional de Informações em Saneamento Básico, apenas uma em cada 5 pessoas em Belém, moram em domicílios que têm acesso a tratamento de esgoto. Imagina o impacto gerado nos corpos hídricos da nossa cidade-floresta, sobre os igarapés que foram cimentados e transformados em canal?! Quais os riscos à nossa saúde caso ocorra uma enchente? Quando 80% do que uma cidade inteira produz de material biológico contaminante entra em contato in natura com os rios que banham nossos bairros, é necessário indignar-se com essa paisagem que reflete nada mais do que a ausência de políticas públicas e privadas dotadas de responsabilidade socioambiental e aplicadas com eficiência. 

São práticas insustentáveis. Seus efeitos começam a se tornar familiares e infelizmente, muitos dos nossos visitantes, mesmo que com algum espanto, se deparam com arranjos já reproduzidos mundo afora. Enquanto muitos vivem pela primeira vez a experiência de tempestades tropicais torrenciais do Brasil da COP-30 e a ineficácia do sistema de drenagem das águas pluviais, o Egito da COP-27 apresentava o avanço na desertificação de suas áreas, por exemplo, marcadas pela desigualdade espacial percebida na distribuição de árvores pelas ruas, presentes apenas em áreas nobres. Sharm el-Sheikh, uma cidade costeira, e Belém do Pará, uma cidade ribeirinha, estão unidas pelo mesmo desconforto climático. O aumento da temperatura já é o maior fator de risco, não apenas à saúde humana, mas a toda a vida na Terra. 

Hoje se aproxima de um milhão e meio o número de habitantes no município de Belém e um pouco mais que a metade dessa população é feminina. Importante pensarmos esses impactos sob uma perspectiva de gênero que considere a sobrecarga e adoecimento de meninas e mulheres. Além do mais, há especificidades como mulheres que são pessoas com deficiência, que pertencem a povos indígenas, que são migrantes, e outras experiências de vida que as afastam da partilha em comunidade, como violência doméstica, pobreza menstrual, abandono escolar, assédio religioso e demais abusos. 

O viés interseccional nas discussões feministas nos lembra que não basta enxergar as mulheres que conseguiram chegar aos espaços de decisão, mas também e principalmente, defender o acesso à representação e autonomia por aquelas que cuidam do planeta e seguram o céu com as próprias mãos, transformando o chão em que pisam em extensões de seus corpos. A justiça climática é perpassada pela necessidade de fazer justiça às mulheres, que sob regimes patriarcais e coloniais, são relegadas a cumprir papéis de gênero tradicionais. Portanto, é preciso olhar para aquelas que sobrevivem diariamente às águas contaminadas, ao esgoto a céu aberto, às tempestades, secas, enchentes, doenças de veiculação hídrica, de ordem respiratória, distúrbios do sono e também às angústias da ecoansiedade. A COP passa, mas as desigualdades ficam. Os lixões e os valões ficam. E o legado real só existirá quando o básico for garantido à dignidade de quem mantém essa cidade viva. 

Crédito da imagem: Reprodução / CNN Brasil

Fontes de consulta:

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Trindade, Saint-Clair Cordeiro Jr. Mairi: A Aura Indígena da Metrópole da Floresta. Geografia Humana, Núcleo de Altos Estudos Amazônicos/NAEA, Universidade Federal do Pará/UFPA. Disponível em https://ihgp.net.br/portalihgp/index.php/mairi-a-aura-indigena-da-metropole-da-floresta .